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Ao longo de encontros realizados em 2021 e 2022, O Instituto Votorantim, em parceria com o Instituto Sivis, realizou uma série de conversas com um grupo de especialistas e organizações discutiram as oportunidades e desafios existentes para o fortalecimento da cultura democrática brasileira.

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Uma série de dados contextualiza as discussões e corrobora essa visão. De acordo com pesquisa do World Values Survey Association (WVSA),

a porcentagem de brasileiros que consideram muito bom viver sob um sistema político democrático é de apenas 37%.

Para fazer o diagnóstico da saúde da democracia brasileira, durante o processo se observou índices brasileiros em retrospecto e com o de quatro países: Alemanha, Chile, Noruega e Uruguai, e destrinchou, sob uma ótica interdisciplinar, alguns pilares: civismo e participação política; normas e valores democráticos; e socialização e capital social.

Embora a participação política no Brasil seja alta, em torno de 75% 2 de votos válidos para as eleições presidenciais desde 2002, há uma diminuição na confiança e na credibilidade do Congresso. No período de 2017 a 2020, apenas 16% disseram confiar nessa instituição1. Esse desgaste também atinge os partidos, cuja fragmentação colabora para o alienamento político e o ceticismo da população.

Por outro lado, mesmo registrando queda, o nível de confiança tanto nas Forças Armadas quanto nas igrejas permanece alto, 63% e 68% respectivamente, também no período de 2017 a 2022, possivelmente reflexo da nostalgia da Ditadura Militar em camadas retrógradas da sociedade.

A proporção de brasileiros que afirma não fazer diferença ser governado por um regime democrático cresceu e chegou a 40%,

em 2018. Chile e Uruguai estão em patamares inferiores, com 14% e 17%, respectivamente, segundo dados mais recentes5. Essa indiferença não significa que todas essas pessoas têm convicção ideológica oposta à democracia, mas manifesta uma falta de preocupação com o assunto.


A metodologia sistêmica e os desafios da democracia

A metodologia sistêmica busca as interconexões entre diferentes campos do conhecimento, suas perspectivas e alternativas complementares para tratar de assuntos complexos, em que muitos atores estão envolvidos. O método é aplicado em várias áreas como psicologia, administração e até mudanças climáticas. Um diagrama, ou mapa, em que fatores não são apenas a soma, mas resultam das interações entre as partes, é um dos produtos da abordagem.

"Exploramos diferentes dimensões da cultura democrática e o mapa sistêmico busca organizá-las para entendermos as relações. O mapa busca traduzir o sentimento do nosso tempo a partir da visão dessas 34 organizações e especialistas que nos ajudaram a trazê-lo à tona.

Quando olhamos nossa cultura democrática, quais são os nossos desafios?", questiona Kemer.

Referências

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O Mapa

Os nove ciclos do mapa sistêmico

É uma questão que remonta a formação do país e, ao lado dos ciclos dois e três, compõem a história central do mapa sistêmico. Trata-se da captura do Estado por quem está no poder e por interesses privados, ou seja, o uso da máquina pública para fins que não sejam o bem comum e o interesse da coletividade. Esse processo passa pela concentração de poder político e econômico nas mãos de poucos grupos ou indivíduos, levando à desconfiança das instituições democráticas, como o Congresso ou os partidos políticos. De acordo com dados do World Values Survey Association (WVSA), a taxa de confiança no Congresso Nacional foi de 16% entre os brasileiros, na pesquisa mais recente.

Os entraves que prejudicam a plena cidadania estão ligados à apropriação do espaço cívico, por meio do mau funcionamento das instituições democráticas, quando elas se desvirtuam de sua finalidade: defender o bem comum e o interesse de todos. Como consequência, há a dificuldade do enraizamento dos valores democráticos entre os cidadãos, que deixam de se enxergar como agentes de sua própria cidadania e passam a se sentir como meros espectadores dos acontecimentos da vida pública.

Os problemas da nossa sociedade se transformam em crises que se retroalimentam, já que os mecanismos democráticos passam ao largo da solução deles. Sem uma cidadania plena, é natural que haja um afastamento das pessoas do exercício da democracia. A insatisfação com as instituições democráticas, muitas vezes pelo desconhecimento das mesmas, deixa a população ainda menos engajada e confiante no sistema. Em resumo, a constante desvalorização das regras do jogo democrático em nossa vida social e política dificulta o enfrentamento dos desafios da sociedade brasileira.

Patrimonialismo é a falta de limites entre o público e o privado, quando, por exemplo, um político faz uso pessoal da administração e do patrimônio público. Cria-se, assim, um ambiente de tolerância em relação a práticas de corrupção, com reflexos em todos os níveis da sociedade. Esse ciclo se relaciona diretamente com a apropriação do espaço cívico. Ao lado do clientelismo, o patrimonialismo permanece como parte da nossa realidade, impactando na aplicação das regras do Estado Democrático de Direito e precarizando a administração pública.

Em larga medida, essa exclusão interessa aos grupos que buscam a permanência no poder, quem "chega lá" raramente manifesta o desejo de deixá-lo. Há uma dinâmica viciosa que impede a chegada de novos grupos. Dessa forma, reforça-se o senso de ineficácia da população, que sente que não há meios de mudar a sua realidade pela política. Isso gera um desgaste ao ponto de os cidadãos deixarem de cobrar a transparência e o controle social de políticas públicas.

A convivência com vizinhos, colegas de trabalho e parceiros em associações são exemplos de vida comunitária. Por meio dessas relações é possível aprender muito sobre cultura democrática e cidadania, conceitos que, muitas vezes, necessitam dessa prática. Porém, no atual contexto do país, a vida comunitária é pouco incentivada e dela pouco se aproveita. Em esferas mais organizadas, a articulação também não existe, emperrando o exercício de direitos e as melhorias das regras da democracia. Historicamente um ambiente de enorme relevância para o associativismo no Brasil, os sindicatos veem o número de membros ativos em uma queda constante, ao longo dos anos, hoje se encontra em nível bastante baixo 4%, de acordo com o WVSA.

Os baixos níveis de confiança interpessoal identificados no país são um obstáculo para o estabelecimento de relações sociais, apenas 6% dos brasileiros disseram acreditar que a maioria das pessoas é confiável, segundo o WVSA. Essa confiança é fundamental para a convivência nos espaços democráticos, como os partidos políticos, que deveriam ser os canais por excelência de conexão entre os cidadãos e as esferas mais formais de participação no regime democrático. A falta de diálogo entre os partidos e a sociedade fomenta a crise, uma situação aparentemente incontornável, na qual muitos desistem e aceitam que as coisas são “assim mesmo”.

Abertura à pluralidade de ideias e à discordância entre as pessoas são prerrogativas do sistema democrático. Ao desvalorizar a liberdade de expressão, do diálogo e da imprensa, cria-se um ambiente de intolerância. Infelizmente, este parece ser o fenômeno em andamento no país. Dados do WVSA, referentes a 2017-2020, mostram que apenas 7% dos brasileiros atribuem importância primordial à proteção da liberdade de expressão. Ainda segundo a mesma pesquisa, cerca de 50% dos cidadãos no Brasil acreditam que a proteção da liberdade das pessoas contra a opressão seja fundamental para a democracia.

A despeito de suas vantagens, o meio digital nem sempre é utilizado de forma democrática. Intolerância e extremismo se tornaram uma estratégia central para a mobilização de bases por muitos atores políticos. Aliado ao modelo de negócios das principais Big Techs, que buscam lucratividade, o ódio e a discórdia nas redes sociais se tornaram correntes, com ataques a desafetos e adversários políticos se sobrepondo à construção de soluções para desafios coletivos.

O MAPA SISTÊMICO

Os ciclos conectam as forças que afetam positiva ou negativamente uma determinada temática, o sinal de positivo (+) indica o aumento dos fatores, se há A aumenta, B também aumenta, um efeito cascata. Da mesma forma, o sinal negativo (-) significa diminuição no fator correspondente.

REFERÊNCIAS PARA OS CAMINHOS POSSÍVEIS

O processo da metodologia sistêmica passa também por identificar caminhos mais promissores para enfrentar o problema em questão. Assim, a partir da análise do diagnóstico da cultura democrática no país, o projeto Conexões para Cidadania identificou oportunidades com maiores chances de promover mudanças estruturais, ou sistêmicas, chamadas de "hipóteses de alavanca".

"Tudo o que foi pensado como alavanca não pode prescindir de alianças, elas não estão dissociadas, elas se retroalimentam e se reforçam. Necessariamente, vamos ter que atuar em parceria. A ideia de trabalhar nesse mapeamento foi entender as oportunidades nas quais a gente pode atuar e ser efetivo. Temos essa preocupação, gerar impacto positivo, e institucionalmente estamos sempre preocupados com a efetividade", explica Ligia Saad, coordenadora de desenvolvimento institucional do Instituto Votorantim.

Foram selecionadas hipóteses de alavancas para rodadas de debates mais aprofundados sobre viabilidade e potencial de impacto nos noves ciclos do mapa: reinvenção da formação cidadã; entretenimento cívico; representação e desigualdade; transbordamento do associativismo religioso; e liberdade de expressão e polarização. Essas alavancas têm como objetivo atingir os ciclos relacionados dentro do mapa sistêmico, que são os limites à consolidação da cidadania; as múltiplas crises da democracia brasileira; os aspectos da desesperança com a política; o subaproveitamento da vida comunitária; e a fragilização do diálogo democrático.

Vale mencionar que há inúmeras possibilidades e caminhos a serem percorridos e as alavancas aqui demonstradas, não se esgotam e não são limitadoras. No entanto, o objetivo foi de dar luz a alguns temas que podem impulsionar e fortalecer a democracia, além de gerar reflexões para que muitos atores da sociedade civil possam se engajar mais ainda no tema.

O ceticismo e a desvalorização da democracia, especialmente entre os jovens, motivam a ação proposta nessa alavanca. Repensar metodologias, conteúdos educativos e também abrir outras possibilidades de exercício da cidadania, como participação local, deliberação, além do incentivo à interação online responsável e ao consumo mais saudável de informações. Em resumo, a ideia é dar meios para a formação cidadã dos jovens, dentro do contexto atual de alto uso de mídias sociais e presença on-line constante.

"O resultado só reforça a necessidade de a política existir. Tudo o que a gente já faz de alguma forma está mapeado nos ciclos que foram desenhados. Em maior ou menor grau, a gente incide nessas questões. Para o Politize! foi ótimo, saímos com um sorriso no rosto, temos mais um argumento teórico provando a necessidade de a gente existir. Espero que isso dê mais força para nossa causa e para os colegas que estavam lá conosco", observa Gabriel Marmentini, diretor executivo do Politize!, entidade da sociedade civil que trabalha com educação política em diferentes frentes, que participou do Conexões para Cidadania.

Os baixos níveis de apoio à democracia e a descrença em seus benefícios e suas virtudes estão na origem do problema que consolidou essa alavanca, que pretende promover as qualidades do sistema por meio de cultura de massa, ou seja, de entretenimento.

"Da questão mais formal à prática cotidiana, a educação cívica é um tema que transborda para outros. Quando falamos de entretenimento cívico é como tornar essa temática mais atraente, mais bacana. A cidadania não tem que estar só na aula de educação moral e cívica, então, como ela invade outros espaços? Ela tem que estar no videogame, no meme, no vídeo do YouTube. É aí que estamos formando as pessoas e, o que costuma circular, mais afasta do que aproxima as pessoas do mundo da política", afirma Rafael Gioielli, gerente-geral Instituto Votorantim.

A imagem dos políticos, muitas vezes atrelada a denúncias de corrupção nos telejornais, colabora para o afastamento da democracia. Essa alavanca propõe uma inovação, já que a representação ficcional da política –não só com seus problemas, mas também com as suas qualidades intrínsecas– pode ajudar a colocá-la em seu lugar de importância, contribuir para a sua valorização, para a adesão ao regime e aos seus princípios.

A desesperança com a política concluiu que a política no Brasil está relacionada com a percepção de que há uma desconexão dos partidos em relação às necessidades e anseios da população. "O sistema político hoje não responde às demandas da população", afirma o sociólogo Márcio Black, coordenador do Programa de Democracia e Cidadania Ativa da Fundação Tide Setubal.

"A cidadania não é um status jurídico, também não é apenas um status político. A cidadania é uma prática, um exercício de direito. No Brasil, é impossível não relacionar a democracia à desigualdade racial", explica. "Sobre qual democracia estamos falando?", questiona o sociólogo. "Estamos falando de uma democracia que acha normal 50 mil jovens negros morrerem vítimas de violência por ano. É uma democracia que convive muito bem com milhares de pessoas em situação de rua. É uma democracia na qual há uma certa tranquilidade com o fato de que, enquanto o feminicídio de mulheres brancas cai, o de mulheres negras cresce."

Os baixos níveis de participação e associação do brasileiro, identificados nas discussões, refletem-se na fragilidade dos valores comunitários, algo fundamental para a cidadania e a sua prática. Uma oportunidade de reverter essa situação pode estar nas entidades religiosas.

"Se as pessoas estão se desengajando, em parte, é porque elas não estão se reconhecendo, a representatividade dentro da política precisa ser trabalhada, assim como a questão das associações religiosas, da cidadania e da democracia, que tem uma potência que pode ser melhorada", afirma Rafael Gioielli.

"Hoje o brasileiro participa muito pouco de associações, não há esse espírito de grupo, de coletivo. E onde ele se manifesta de maneira mais forte é nas associações religiosas. Há um potencial enorme para o exercício da cidadania, da coletividade. Não pela religiosidade, mas para se organizarem em torno de um coletivo."

Rafael faz uma ressalva sobre o papel de um líder religioso. "O poder concentrado na mão de poucas pessoas, que talvez não tenham interesses tão republicanos, é um risco. Agora, não podemos descartar a possibilidade de uma agenda positiva, de ser uma oportunidade para fortalecer a cidadania."

A intolerância com opiniões divergentes, que diminuem as possibilidades de diálogo, e a polarização intensa também foram levantadas como fraquezas que devem ser trabalhadas para o fortalecimento da cultura democrática.

"A liberdade de expressão foi muito comentada ao longo do processo. É um conceito muitíssimo apreciado, mas hoje a gente entende que ela precisa ser exercida com responsabilidade. Discurso de ódio não é liberdade de expressão, quando eu anulo o outro, quando aniquilo a contribuição do outro, não estou exercendo a liberdade de expressão, estou sendo intolerante", destaca Ligia Saad.

"Há o paradoxo da tolerância, não podemos ser tolerantes com os intolerantes, do contrário a gente ameaça à democracia", afirma ela. Para reverter esse cenário, uma das propostas é colocar sociedade civil, universidades e legisladores trabalhando juntos para jogar luz na questão, ou seja, tratar do debate público em plataformas online, dos limites do poder de censura do Estado e até desenvolver uma legislação mais adequada, nos moldes do Marco Civil da Internet. Outra proposta é avançar com as práticas deliberativas, em que um público diverso e bem-informado pode ponderar sobre os méritos de uma questão para chegar a julgamentos equilibrados.

Veja quem participou

Organizações

Gabriel Marmentini (Politize!)

Gustavo Bernardino (GIFE)

Henrique Parra (Instituto Cidade Democrática)

Ivanildo Terceiro (Students for Liberty)

Leandro Pasini (Instituto Tellus)

Luís Fernando Iozzi Beitum (Instituto Terroá)

Magno Karl (Livres)

Márcio Black (Fundação Tide Setúbal)

Maria do Socorro Mendonça (Instituto Nossa Ilhéus)

Patrícia Tavares (Datapedia)

Renata Giannini (Instituto Igarapé)

Túlio Malaspina (Instituto Update)

Vanessa Menegueti (Instituto Governo Aberto)

Especialistas

Bernardo Brandão

Bruna Frascolla

Eduardo Wolf

Eliane Trindade

Ewandro Schenkel

Humberto Dantas

Isabele Mitozo

Janine Bargas

José Álvaro Moisés

Manoel Galdino

Marinalva Cruz

Márlon Reis

Mônica Sodré

Nara Pavão

Pedro Nascimento

Rafael Gioielli

Simone Piletti Viscarra

Sílvia Cervellini

Wilson Gomes